No dia 26 de agosto de 2017, foi realizada a oficina "Famílias de Origem: Novos Olhares e Potências". O encontro contou com a participação do psicólogo Raum Batista da Associação Brasileira Terra dos Homens, uma organização da sociedade civil criada em 1996 para garantir que toda criança cresça em uma família, tendo por referência normas nacionais e internacionais que tratam do direito à convivência familiar e comunitária.

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   Raum iniciou a apresentação situando a missão da Terra dos Homens e os trabalhos desenvolvidos pela entidade, que estão divididos em três eixos: 1) trabalho de campo que implica no acompanhamento psicossocial das crianças, adolescentes e suas famílias; 2) difusão de conhecimento que está voltado à realização de cursos, oficinas e publicações de livros e metodologias de trabalho na área e 3) defesa de direitos que se relaciona à implementação de políticas públicas. Raum ainda mencionou diversas publicações da Terra dos Homens que podem ser acessadas no site da organização e esclareceu que a filosofia de trabalho da entidade está pautada nos seguintes aspectos:

  • O saber se constrói;

  • Todo mundo sabe alguma coisa, todo mundo tem alguma coisa para aprender;

  • Partir do vivido para ir aos conceitos;

  • Partir das pessoas para ir às coisas;

  • Ninguém está certo ou errado. Um debate é fértil quando as opiniões se confrontam, não quando elas se afrontam;

  • A experiência de cada um é útil.

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   Ao introduzir o tema relacionado à constituição da família brasileira, Raum conduziu uma dinâmica com os participantes da oficina para que pudessem refletir sobre o conceito de família que carregam consigo e a concepção que carregam sobre as famílias das crianças e adolescentes acolhidos. Inicialmente o psicólogo solicitou que os presentes completassem a seguinte frase em uma tarjeta previamente distribuída: “família é....”. Após realizada esta atividade, solicitou que os participantes colassem em um mural as suas respostas e, com a ajuda de uma voluntária, leu as principais palavras/frases. De maneira geral, as pessoas associaram família à segurança, amor, afeto, proteção, cuidado, grupo de pessoas unidas pelos laços consanguíneos ou não, atenção, amparo, comunhão, coisa boa, coisa ruim, a base de tudo, a base de formação do caráter, entre outras. Em seguida, após distribuir uma tarjeta de outra cor, pediu para que os presentes completassem a seguinte frase: “família de crianças e adolescentes que atendemos é...”.

   Os participantes também colaram no quadro as tarjetas e novamente as respostas foram lidas. Dentre elas, estavam: carentes de afeto, igual às outras, só estão passando um momento de fragilidade, base, afeto, vítimas, especial, precisando de ajuda, difícil, falta base e orientação, desestruturadas, negligentes, resistentes, complexas, desorientadas, problemáticas, etc. Raum explorou então, com o grupo, as diferenças da maioria das respostas entre a primeira para a segunda etapa, sendo que um dos aspectos levantados pelos participantes foi o fato de haver uma associação maior no segundo momento com problemas/falta de estrutura e do primeiro momento com amor/estrutura. No final da dinâmica Raum pediu aos participantes para misturar no quadro as características que poderiam pertencer aos dois grupos (ex. família em geral é também carente). A dinâmica auxiliou a problematizar os modelos de famílias que as pessoas carregam consigo (muitas vezes idealizados) e que podem acabar levando a uma visão preconceituosa das famílias das crianças e adolescentes acolhidos.

   Na sequência da oficina, Raum situou o conceito de família ao longo da História Brasileira. No período colonial houve o predomínio da família patriarcal, com o poder centralizado na figura do homem. Ao longo do tempo, a família foi se modificando de acordo com as mudanças sociais, passando a imperar o modelo de família nuclear burguesa, caracterizada pela rígida divisão sexual dos papeis do homem e da mulher; o estabelecimento de novos padrões de educação dos filhos e o foco na higiene e disciplina dos integrantes. Os valores da família burguesa eram a domesticidade, o amor romântico e o amor materno. Quanto às demais transformações, o psicólogo apresentou o seguinte quadro com a síntese das principais características das famílias nos anos 70, 80 e 90/00.

   Pode-se afirmar que as famílias contemporâneas acabaram sofrendo as seguintes influências em sua constituição: 1) modernização tecnológica na produção; 2) nova divisão social do trabalho; 3) globalização da economia/informação e 4) multiplicidade cultural. Atualmente há dois modelos de família que convivem no dia a dia: um modelo mais hierarquizado em que há o predomínio do poder masculino, estando a relação sexual focada na procriação e as relações sendo reconhecidas a partir de vínculos de consanguinidade.  O outro modelo é igualitário, sendo caracterizado pelas decisões conjuntas entre os membros, a sexualidade não é vista como um tabu, os vínculos estão baseados sobretudo no afeto e o cuidado com os filhos é compartilhado entre o casal/integrantes da família.

    Ao longo do tempo, surgiram novas definições de família, tal como as apresentadas abaixo:
•    “ Família é gente com quem se conta. ”  (ONU, 1994)

•    “...um conjunto de pessoas que se acham unidas por laços consanguíneos, afetivos e, ou, de solidariedade.” (SUAS, 2004)

    O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária trouxe uma definição que deve pautar o trabalho atual: “família pode ser pensada como um grupo de pessoas que são unidas por laços de consanguinidade, de aliança e de afinidade. Esses laços são constituídos de representações, práticas e relações de obrigações mútuas...”. Segundo Raum, esta definição acaba rompendo com o modelo tradicional. O psicólogo ainda pontuou a importância de se levar em conta o artigo 227 da Constituição Federal que é dever da família, sociedade e Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem os cuidados necessários, mas que cada instância está relacionada à outra. Não dá para jogar a responsabilidade somente na família se faltam políticas públicas, por exemplo. 

   Em relação ao trabalho direto, o psicólogo problematizou o fato de termos geralmente como referência o pai e a mãe da criança e do adolescente (pela própria influência do modelo de família nuclear burguesa). Ele salientou a importância de se considerar outras referências das crianças e adolescentes atendidos e de se buscar fazer um trabalho de aproximação com essas referências. O trabalho deve estar focado nas pessoas com quem os atendidos possuem vínculos. A pergunta para a criança e adolescente deve ser: com quem você pôde contar para ajudar a ser quem você é? Quem são as pessoas que te ajudam? Às vezes pode ser a vizinha, e para essa criança a vizinha é a família. É fundamental que a própria criança nos diga quem ela considera família. Ou seja, neste enfoque, o olhar da família quem vai dizer é a pessoa atendida e não os técnicos. 

   Raum prosseguiu afirmando que toda família vivencia pressões que podem ser micro ou macro, havendo tanto pressões externas e pressões internas.

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   Tais situações vão configurando momentos de crise, tais como o nascimento de uma criança, divórcio, entre outros eventos. As famílias passam todo tempo por crises e é importante compreender qual é o momento que a família está vivenciando. Na teoria sistêmica há a compreensão de que as famílias vivem momento de crise, se desorganizam, mas depois voltam a se arranjar e retornam a uma nova organização. Para o psicólogo este ponto é importante porque as famílias têm a capacidade de se auto-organizar. Ou seja, o profissional pode ajudar a familiar a entender como lida com a crise para auxiliá-la nesta auto-organização. Nem sempre a organização que a família acaba seguindo vai de encontro ao que os técnicos estão planejando, sendo importante muitas vezes acreditar na capacidade/potencial da família. Raum ainda enfatiza a importância de não culpabilizarmos/julgarmos a família culpada pela violência estrutural que vivenciam.

   Ele mencionou que já viu muitos casos de acolhimento ocorrerem devido à violência estrutural – ex. o psicólogo disse que já viu um acolhimento acontecer porque não havia na casa da criança água tratada. Um outro caso foi o de uma mãe que trabalhava como gari, sendo que os filhos encontravam com ela logo que saiam da escola. Enquanto ela varria as ruas, os filhos permaneciam com ela brincando, mas também pedindo dinheiro para os carros no semáforo. As crianças foram acolhidas e retornaram pouco tempo depois para a mãe que dizia que não podia deixar os filhos sozinhos na comunidade porque não tinha ninguém para ficar com eles. De acordo com ela, a comunidade estava “em guerra” e os filhos estavam correndo muito risco se ficassem sem nenhuma pessoa olhando eles, sendo que na rua pelo menos ela estava acompanhando os filhos. Neste caso o Estado está violando um direito, pois não há programas de contra turno escolar, que as crianças possam ficar enquanto ela trabalha.

   A premissa maior do trabalho realizado pela Associação Brasileira Terra dos Homens é olhar para a família não pelo que lhe falta, mas por sua riqueza. No caso descrito acima, a mãe em questão é uma mãe cuidadora, preocupada com os filhos. É exatamente esse potencial que precisa ser trabalhado. Em muitos casos, é necessário realizar intervenções antes do acolhimento para fortalecer a família e não enfraquecê-la. Também é fundamental compreender que muitas vezes a criança/adolescente são abrigados devido a um imediatismo de uma determinada situação. Quando a criança chega no acolhimento, é importante olhar três gerações e envolver a própria família para resolver as situações de violência.

   A culpabilização da família acaba tirando a potência dela e transformando ela em um sistema disfuncional, sem capacidade para se organizar e a responsabilidade fica na equipe/técnicos que realizam o trabalho. A mudança de paradigma do trabalho a ser realizado acontece ao transformarmos a incapacidade em competência, a disfuncionalidade em estratégias de sobrevivência (ex. a estratégia de sobrevivência da mãe que trabalha como gari é levar os filhos com ela para o trabalho). O modelo de intervenção da abordagem sistêmica em relação à uma posição de Salvador da Pátria está apresentada na figura abaixo:

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   Para Raum, quando a criança chega ao serviço, é importante ampliar o olhar. É fundamental perguntar quem são as figuras de referência, qual o contexto da comunidade onde mora, sendo importante compreender o bairro onde mora e suas fortalezas/forças. As pessoas certas da comunidade podem ajudar a resolver a situação de crise/problema para que se possam olhar a criança sempre no seu contexto. Além disso, ao trabalhar a família, é importante buscar o ponto sólido na dinâmica familiar. Constantemente há alguém que é um ponto sólido que vai auxiliar a fazer com que a família saia da situação de violência. Ainda é fundamental iniciar o trabalho muitas vezes fornecendo um grande apoio – ex. acompanhar a mãe no posto de saúde. Com o tempo, podemos reduzir o apoio e o acompanhamento enquanto a mãe/família vai se fortalecendo e se auto-organizando.  Na metodologia de atendimento é fundamental o seguinte:

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   Ao final da apresentação, Raum mencionou as diretrizes elaborada por 166 ONGs de todo mundo para fazer o mapeamento da criança ao voltar para sua família de origem. A premissa da reintegração tradicional olha o Sistema de Garantia de Direitos a partir do lugar que ocupamos na instituição/serviço que trabalhamos.  Por exemplo, após o acolhimento o CREAS/serviço deve acompanhar a criança por mais 6 meses e depois ela passa a ser responsabilidade do CRAS. As diretrizes propõem que a criança esteja no centro. A reintegração é um processo e é necessário transcender o fluxo tradicional. Todos os equipamentos vão ter que trabalhar no caso, ainda que a criança esteja sob a responsabilidade em um determinado momento do serviço de acolhimento. 

 

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    Após as apresentações, foram realizados debates em subgrupos tendo as seguintes perguntas que auxiliariam a disparar a discussão:
1) Quais são os principais desafios que você enfrenta no relacionamento com as famílias das crianças e adolescentes acolhidos?  
2) Quais são as atividades desenvolvidas no seu serviço de acolhimento que visam o fortalecimento dos vínculos familiares?    
3) A partir da fala do especialistas e discussão no grupo, algo mudou na sua maneira de pensar e olhar o tema? Que novas estratégias podem ser pensadas no trabalho comas famílias dos acolhidos?

Ao final os grupos apresentaram os principais pontos debatidos e Raum voltou a esclarecer dúvidas e problematizar situações.

Aqui estão os vídeos com a gravação da oficina na integra: