“Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história”
Hannah Arendt 

O respeito à história e o direito à verdade são a base para o trabalho com as crianças e adolescentes que estão nos serviços de acolhimento. Independente dos motivos que levaram à medida de proteção, o afastamento da família de origem não ocorre sem efeitos, é um período delicado e complexo.

Era uma vez um coelhinho chamado Tutu, o coelhinho morava com sua mãe e seu irmãozinho em um bosque muito perigoso…

Ao chegar em um serviço de acolhimento, crianças e adolescentes vão precisar de adultos de referência que os ajudem na compreensão das condições que os levaram ao afastamento de sua família, e para ter suas angústias, sofrimentos e dúvidas reconhecidas e validadas. Esse processo exige a presença de adultos preparados para olhar cada criança e adolescente de forma singular, levando em conta suas histórias de vida e seu contexto sociocultural. O serviço de acolhimento deve ser um espaço no qual crianças e adolescentes sintam-se protegidos e criem vínculos de confiança e afeto.

...Tutu foi morar em um bosque muito animado e cheio de outros animais . Os moradores desse bosque também estavam ali de passagem, até que pudessem voltar para a sua família ou ter uma nova família que cuidaria para sempre deles, longe de perigos.

No entanto, para muitas crianças e adolescentes não é tarefa fácil falar sobre suas histórias espontaneamente, muitas trazem suas vivências a partir dos comportamentos, no jeito que se alimentam, como dormem, e na forma como se relacionam. Isso fica ainda mais evidente com as crianças pequenas e os bebês, cujo sofrimento aparece prioritariamente através das manifestações de seu corpo. Por isso, o adulto precisa ter uma escuta atenta e sensível, para compreender o que o bebê, a criança e o adolescente estão tentando nos dizer através de seu corpo e comportamentos. 

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Ao longo desses anos de atuação, desenvolvemos metodologias para que crianças, adolescentes e jovens com experiência de acolhimento, entrem em contato, se apropriem de suas histórias de vida, possam registrá-las e assim, ter maior participação em seus processos de acolhimento.

A metodologia do programa Fazendo Minha História oferece estratégias que facilitam o trabalho com histórias de vida nesse contexto: a literatura infanto-juvenil, o vínculo de afeto entre um adulto de referência e a criança ou adolescente, e a construção de álbuns de registro em um espaço individualizado, são as principais estratégias de trabalho do programa.

Para saber mais sobre o programa Fazendo Minha História e sobre o álbum, acesse: https://static1.squarespace.com/static/56b10ce8746fb97c2d267b79/t/56bcc5567da24f4faa269479/1455211873350/guiafmh.pdf

Para além dessas estratégias, percebemos que muitas crianças e adolescentes não têm o amadurecimento ou o repertório de linguagem suficientes para compreender todas as informações que compõem a sua história de vida, seu processo de acolhimento e a complexidade dos sentimentos que a acompanham. Precisam de ajuda para entender e elaborar o que vivem!

Muitas vezes, a dificuldade de falar sobre fatos importantes da história da criança vem do próprio adulto cuidador (educador, técnico, família acolhedora), que silencia frente ao medo de que essas histórias provoquem ainda mais sofrimento e dor.  Com o intuito de proteger a criança, acabam por negar-lhe o direito à verdade e à sua história.

A questão é que uma história vivida não se apaga, e por menor que seja a criança, essas vivências deixam marcas. A possibilidade de nomear e criar narrativas sobre o que se vive é fundamental para ajudar a criança e o adolescente a integrar suas vivências e sentimentos de maneira criativa e saudável. Para isso, é necessário que os adultos estejam atentos às suas necessidades e que possam oferecer ferramentas e espaços para a construção das narrativas. 

Psicólogos e psicanalistas  (Françoise Dolto, Winnicott, Gilberto Safra, Renate Meyer Sanchez) que trabalham com crianças pequenas perceberam que histórias de faz de conta contribuem muito no trabalho com crianças e adolescentes e suas histórias de vida.  Segundo esses autores, as narrativas de ficção tratam de maneira indireta e não literal aquilo que é vivido, e através delas, a criança pode se sentir mais compreendida e/ou menos confusa com relação ao que aconteceu e ao que sente


"As histórias são então um "objeto" que oferecemos à criança (assim como a boneca, o carrinho ou o revólver, no jogo). Este objeto permite que suas fantasias, seus temores, seus desejos proibidos sejam vividos de forma simbólica. O que pode impedir que ela tenha que vivê-los de forma concreta."

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As metodologias criadas por Gilberto Safra e Renate Meyer Sanches oferecem parâmetros para ajudar a criança a lidar com conflitos, angústias e sofrimento através de uma história criada por seu adulto cuidador (com ou sem a ajuda da criança). A narrativa será construída com personagens que a criança gosta (animais, carros, etc.) e o enredo deve conter os elementos principais da situação desafiadora que ela vive, permitindo que se identifique, se reconheça e elabore seus sentimentos. O percurso da trama deve conter os conflitos e maneiras de solucioná-los. Através do recurso lúdico e da fantasia podemos dar nome (palavras) àquilo que a criança viveu e sentiu, dentro de um contexto seguro, não invasivo.

Dependendo da idade da criança ela pode participar ativamente desta criação. Diferente dos bebês, o envolvimento das crianças maiores na construção das histórias mostra-se, quando possível, um recurso potente para reconhecimento, apropriação e ressignificação da narrativa de suas vidas. É importante que o adulto que sistematizará a história que cura proponha, a princípio, atividades lúdicas a fim de mergulhar na compreensão e significados que a criança já tem de sua história, e que tenha um vínculo significativo com a mesma.

Assim, podemos iniciar a construção da narrativa de maneira cuidadosa, utilizando fantasias, personagens e outros elementos trazidos pela própria criança no decorrer dessas atividades. Evitamos, assim, a ideia equivocada da infância como uma folha em branco a ser preenchida pelo adulto e, em oposição, reconhecemos a criança como um sujeito ativo, que sabe distinguir seu contexto e tem o potencial de modificá-lo. Há infinitos modos de caminhar junto à criança nessa construção, dependerá do que emergir em cada encontro.

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Com as crianças mais velhas esse processo pode durar muitos encontros, e é importante que o adulto respeite o tempo da criança, mostrando-se aberto para escutá-la. Já no casos de crianças pequenas e bebês, é o próprio adulto que cria a história.

Os passos a seguir orientam a construção das histórias que curam

• Crie um personagem fictício (animais costumam funcionar, mas também podem ser objetos, frutas, veículos, etc.) com o qual a criança possa se identificar – busque saberdos gostos da criança para isso, assim a possibilidade de ela “empatizar” com estes será maior; 

• Não faça um personagem que seja muito parecido com a criança, pois isso pode deixá-la resistente; 

• Não nomeie o personagem com o mesmo nome da criança, lhe dê outro nome;

 • Invente uma história que traga os mesmos elementos básicos da história da criança, agora na pele dos personagens; 

• Procure descrever ao máximo as situações, os conflitos e os sentimentos dos personagens para facilitar a identificação da criança com estes e a compreensão do que aconteceu. A inserção de menos ou mais elementos da realidade, dependerá da idade e do momento em que a criança vive. Gilberto Safra (2011), ao falar da utilização das histórias na prática clínica, enfatiza que cabe a quem está realizando a intervenção junto a criança ter sensibilidade e flexibilidade constantes para se adaptar à situação concreta da criança. 

...chegou desconfiado, sentia medo porque não conhecia as cores e sons da casa da ovelha Ruth. Mas logo, Tutu começou a se sentir melhor… sentiu que podia confiar em Ruth, e aos poucos o coelhinho foi deixando de lado o medo e dando lugar para outros sentimentos: amor, cuidado e diversão.

 • Cada conflito ou impasse que acontece em seguida deve ter uma resolução ou um fim; 

•  Ao apresentar a história à criança, acolha qualquer reação que possa emergir (desinteresse, ansiedade, questionamentos, querer ouvir novamente, etc) e não exija dela algum posicionamento ou comentário específico – cada criança irá receber a história à sua maneira e demonstrar ou não os efeitos que esta teve! É fundamental uma escuta constante aos limites e barreiras sinalizadas pela criança, para que, respeitando o tempo adequado à possibilidade de cada um, o trabalho com a história que cura possa ocorrer de forma acolhedora e não violenta.

As Histórias que Curam se caracterizam como uma das estratégias de trabalho do nosso Serviço de Famílias Acolhedoras, em que para cada criança acolhida (além do álbum) é construída uma história de ficção, baseada em sua própria história de vida. Essa estratégia vem se mostrando potente tanto para ajudar as crianças a entenderem sua história e processo, como para auxiliar as famílias acolhedoras, as famílias de origem e até as famílias adotivas a conversarem mais francamente com as crianças. Como foi o caso do João, ilustrado abaixo:

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João, de três anos de idade, foi acolhido por uma família acolhedora durante seis meses, após ser transferido do acolhimento institucional onde ficou por 10 meses devido a situação de desproteção que vivia junto aos seus pais. As visitas com sua mãe eram proibidas e por isso a criança não pôde viver uma despedida, precisou elaborar essa separação e viver o luto pela família de origem sem qualquer encontro presencial que pudesse ritualizar essa despedida. 

Utilizamos a estratégia das Histórias que Curam com ele, para apoiá-lo na elaboração de uma história repleta de percalços, rupturas e inseguranças. Em sua história, João era um coelhinho sorridente e amoroso, que morava com sua mãe em um bosque muito perigoso. Precisou ser afastado de sua mãe para ir morar com outros animais em um lugar seguro (abrigo), até ir morar na casa da família de ovelhas (família acolhedora) que o protegeu até a chegada de sua família definitiva (família adotiva). Nesta construção, fomos explicando os diferentes locais por onde passou a partir de coletivos de animais, desconhecidos a princípio pelo personagem principal, mas com os quais foi descobrindo poder se sentir seguro.

Como nas orientações acima pontuadas, o coelhinho na história de João demonstra diversos sentimentos referente às constantes mudanças de locais de moradia, sendo sempre acolhido e suas angústias superadas. João escutava a história todos os dias antes de dormir, até que começou a verbalizar que era o coelhinho e isso proporcionou conversas sobre sua história de vida.

Após a decisão judicial de colocação em família substituta, inserimos novas páginas na história já tão conhecida por João. Era a chegada do casal de ursos que queriam ser os papais do coelhinho. Usamos a leitura das novas páginas para contar a João sobre a chegada de sua família e nomear o casal como “mamãe” e “papai”. João demonstrou surpresa ao escutar a história do coelhinho que agora se misturava de fato com a sua e desde então começou a chamar os pretendentes de pai e mãe.


Os ursinhos estavam há um tempo à procura de um filhote para chamar de seu e quando conheceram Tutu se apaixonaram. A ursinha está ansiosa para ensinar Tutu a andar de bicicleta e o ursinho para ensiná-lo a pescar, as atividades preferidas dessa família.


Esse é um dos exemplos de situações onde a estratégia se efetivou e apoiou conversas delicadas e importantes entre a família acolhedora e a equipe com a criança acolhida. Cabe ressaltar que as Histórias que Curam podem não ser efetivas em alguns casos, já que devemos considerar o gosto/hábito da criança em escutar histórias, por exemplo. Este reconhecimento é importante para que a estratégia seja aplicada de forma orgânica e artesanal e não seja a única no sentido de garantir o direito das crianças a suas histórias de vida.  

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Perdas significativas, rupturas, e eventos difíceis fazem parte da vida de qualquer pessoa, mas costumam marcar de forma bastante evidente a vida das crianças e adolescentes que vivem em serviços de acolhimento, afastadas temporariamente ou definitivamente de suas famílias de origem. Quando identificada a abertura da criança para esta criação, a História que Cura torna possível que ela se identifique com conflitos e sentimentos de maneira acolhedora e não disruptiva, entre eventos felizes e eventos doídos que, muitas vezes, foram soterrados pela criança e abafados pelo mundo adulto em seu entorno, receosos em lidar com as expressões de sofrimento que surgem da criança. 

Assim, a construção, leitura e releitura da história que cura, permite o diálogo da criança em acolhimento com sua própria história, viabilizando o processo de elaboração de eventos difíceis e apresentando repertório para a nomeação de emoções e ressignificação do passado, presente e futuro.

E assim a vida do coelhinho seguirá. Agora ele terá uma família para cuidar dele para sempre e a família de carneirinhos ficará guardada em suas memórias e no seu coração. 

Por: Aline Franco Petegrosso, Andreia Fischer e Lara Naddeo

  1. Trecho da História que Cura construída para criança acolhida no serviço de acolhimento familiar do Instituto Fazendo História.

  2. História que Cura construída para criança acolhida no serviço de acolhimento familiar do Instituto Fazendo História. Este trecho narra sua passagem por um serviço de acolhimento institucional, explicando de forma lúdica o funcionamento do serviço.

  3. Renata Meyer Sanchez no livro Conta de novo mãe: histórias que ajudam a crescer.
    Livros Curando com histórias (2011) e Conta de novo mãe: histórias que ajudam a crescer. (2010)

  4. Trecho da História que Cura construída para criança acolhida no serviço de acolhimento familiar do Instituto Fazendo História. Esta passagem narra os desafios e ambivalência de sentimentos da criança ao chegar na casa da família acolhedora.

  5. Os nomes usados são fictícios.

  6. História que Cura construída para criança acolhida no serviço de acolhimento familiar do Instituto Fazendo História. Este trecho descreve a saída da criança do serviço de acolhimento, quando passa por um processo de aproximação, reconhecimento e construção de vínculos com a família que será definitiva.