Talvez você nunca tenha parado para pensar a respeito, mas sabia que alguns adolescentes acolhidos em abrigos, casas lares ou famílias acolhedoras não puderam voltar a morar com suas famílias de origem e não foram adotados por não terem perfil compatível com aquele desejado pelos pretendentes à adoção?  

Essas meninas e meninos ficarão acolhidos até completarem 18 anos. Depois disso serão encaminhados para uma República Jovem (única política pública específica para esse público e onde podem permanecer por até 3 anos) ou viverão por conta própria.

Gostaria de convidar você para um exercício de empatia, de se colocar no lugar desses adolescentes por alguns minutos e refletir: que desafios, preocupações, medos e angústias eles possivelmente enfrentam?

Antes de pensarmos sobre as especificidades desses adolescentes, vale considerarmos que o período entre a infância e a vida adulta não costuma ser fácil nem mesmo para aqueles que vivem com suas famílias e possuem amplo apoio afetivo e material, não é mesmo?

A adolescência, que pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, é o período entre os 12 e 18 anos de idade, é marcada por mudanças significativas e intensas, que transformam o modo como o indivíduo se reconhece e se coloca no mundo. Nesta fase, o jovem começa a dar novos sentidos e significados para o corpo que está em transformação, para os laços sociais e para suas relações, construindo uma nova definição de si mesmo. Na passagem do mundo infantil para o mundo adulto são feitas escolhas pessoais e profissionais, ao mesmo tempo em que surgem novas expectativas sociais. É um tempo de intenso trabalho emocional.

Os projetos de vida elaborados nessa fase da vida são construídos, por um lado, a partir da visão que o adolescente tem de si mesmo, de suas qualidades, desejos e propósitos, e, por outro, a partir das oportunidades concretas que o mundo externo oferece e que, no contexto do acolhimento, podem ser extremamente desiguais devido a questões de raça, classe, sexualidade e gênero. É preciso lembrar que a maioria das crianças e adolescentes acolhidos são pretos e pardos e, devido ao racismo estrutural que caracteriza nosso país, enfrentam inúmeras desvantagens em relação a pessoas brancas, seja no mercado de trabalho, na distribuição de renda, nas condições de moradia, na educação, nas diversas formas de violência ou na representação política. Como consequência, há maiores níveis de vulnerabilidade econômica e social neste grupo. Adolescentes meninas enfrentam ainda desafios ligados à discriminação e desigualdade de gênero, que coloca meninas e mulheres em condições de maiores dificuldades de vivência e sobrevivência e reforça estereótipos e papéis de gênero sob a crença de que o sexo masculino é superior ao feminino.  

Em meados de 2021, foi realizada uma visita com um grupo de adolescentes em situação de acolhimento a uma exposição sobre Carolina Maria de Jesus, importante escritora brasileira negra que, por meio de sua arte, retratava questões sociais de um povo negro, periférico e pobre. Ainda na entrada, três adolescentes que compunham o grupo – não por acaso negros – tiveram uma truculenta e abusiva abordagem policial. Apontando as armas para suas cabeças e hostilizando-os, os policiais os acusavam de terem furtado pessoas das proximidades. Mesmo em meio as intervenções e protestos das técnicas que acompanhavam o grupo, eles continuaram com a ação violenta, intimidando-as e constrangendo os adolescentes ainda mais, em frente a uma fila de pessoas que aguardava para adentrar à exposição. Não encontraram nada. Além das técnicas e integrantes do próprio grupo, não houve reação de nenhuma outra pessoa que estava acompanhando a situação, nem da instituição que se propunha a denunciar, por meio da Carolina Maria Jesus, o racismo e as desigualdades sociais.

Há muitos desafios que os adolescentes junto às suas famílias em um contexto de vulnerabilidade podem enfrentar, contudo, para os que vivem no contexto de acolhimento, há ainda outros, acredite. Somam-se aos desafios já descritos o fato de que muitos estiveram acolhidos por muitos anos e precisarão necessariamente se desligar do serviço ao completarem 18 anos. Essa despedida compulsória muitas vezes ignora o desejo e o tempo que cada um necessita para uma mudança tão grande e relevante. Afinal, quantos de nós ou dos adolescentes que conhecemos estavam prontos para sair de casa e se virar sozinhos nessa idade?

                Camila[1] é uma jovem de 19 anos, que ficou acolhida em um mesmo serviço por aproximadamente 9 anos até completar a maioridade e se desligar. No período de acolhimento, perdeu o contato com sua família de origem e seu irmão mais novo, que estava com ela no mesmo serviço e passou por uma adoção internacional. Camila seria adotada junto com ele, entretanto, a família pretendente a rejeitou e levou somente seu irmão. Durante o período de acolhimento, Camila tomava muitos medicamentos em decorrência de questões relacionadas à sua saúde mental.  Quando completou 18 anos, teve que sair do abrigo e teve muitas dificuldades para se adaptar a um novo espaço e rotina. Passou por duas repúblicas, tentou morar sozinha, morou com amigas, passou por albergue e hoje, retornou para república. Neste período, tomou a decisão de suspender toda sua medicação, alegando que não conseguia ser ela mesma com a alta dosagem, e isso afetou severamente seu humor e seu comportamento. Sua rede de apoio era bastante restrita e frágil, o que tornou sua saída ainda mais desafiadora. A jovem foi gradativamente compreendendo suas experiências dentro e fora do abrigo, encontrando outros espaços sociais de pertencimento e aderindo ao acompanhamento psicológico. Hoje está mais fortalecida em seu discurso e atitudes em torno de seus projetos e planos para o futuro.

O adolescente que irá se desligar pela maioridade se vê forçado a enfrentar o mundo muitas vezes sozinho, em uma idade que não está pronto para isso. Além disso, se despedir aos 18 anos do local em que viveu, às vezes por muitos anos, pode significar perder um lugar de pertencimento para o qual não se pode voltar sempre que quiser pedir ajuda, compartilhar notícias ou simplesmente almoçar num domingo ao lado de pessoas queridas. Nessa mudança, perdem-se também laços afetivos importantes construídos com pessoas que talvez não volte a conviver.

A adolescência é também um tempo de resgate da própria história. Entrar em contato, elaborar e integrar histórias pessoais e familiares, assim como superar ou identificar-se com valores ligados à sua origem, permite construir e escrever uma história futura. No entanto, adolescentes que ficaram acolhidos por muitos anos podem ter muitas lacunas em suas memórias. Por que fui acolhido? Por que fiquei aqui por tantos anos? O que realmente passou com minha família? Onde estão meus pais, irmãos, avós? Por que não fui adotado? É possível ser feliz sem ter uma família? Sou merecedor de amor e cuidado? Com quem poderei contar quando eu não estiver mais acolhido? Essas podem ser algumas das perguntas para as quais nem sempre encontram respostas. E exigir a projeção de um futuro a partir de um passado muitas vezes incerto chega a ser injusto.  

Manoel[2] é um adolescente negro de 17 anos, prestes a completar 18, que reside em serviço de acolhimento institucional desde os 10 anos de idade, junto com um irmão que hoje tem 16 anos. Em um primeiro momento, ficaram acolhidos com dois irmãos mais novos. Posteriormente, os menores foram destituídos do poder familiar e encaminhados para adoção. Por conta disso e com o objetivo de afastar os irmãos, Manoel e o irmão de idade mais próxima à dele foram transferidos para um outro serviço de acolhimento. O tempo foi se passando, os vínculos foram se enfraquecendo e atualmente o adolescente não tem mais informações sobre os pais e outros familiares, nem mesmo sobre seus dois irmãos mais novos. Já houve duas tentativas de apadrinhamento afetivo que não deram certo, colocando-o, novamente, em experiência de rompimento de vínculos e sensação de abandono. Atualmente, os adolescentes têm um padrinho afetivo e existe um grande vínculo entre eles. Manoel sempre expressou o desejo do padrinho adotá-lo, mas por diversas razões isso não é possível. Assim, o adolescente se prepara, como pode, para em breve se desligar do acolhimento e seguir por conta própria.

Experimentar, desistir e experimentar de novo faz parte da descoberta do mundo e do processo de amadurecimento. Mas os adolescentes acolhidos têm menos chances de fazer essas experimentações, uma vez que eles e os adultos responsáveis por eles vivem sob a pressão de tomar decisões urgentes ligadas a necessidades básicas de moradia e trabalho. Onde e com quem vou morar? Que trabalho me interessa? Os trabalhos que me interessam estarão disponíveis para alguém como eu? Essas provavelmente são outras perguntas que os adolescentes se fazem.   

Esses fenômenos, que muitas vezes ocorrem de forma extremamente violenta, produzem um efeito absolutamente singular na história de vida de cada indivíduo e no seu modo de ser, existir e transitar no mundo. Há muitas adolescências possíveis, não há um modo único para definir os adolescentes que estão no serviço de acolhimento. No entanto, sabemos que é essencial para todos uma preparação verdadeiramente gradativa para o desligamento e um contexto que oportunize uma vida digna, saúde, moradia, renda e educação. Isso deve incluir a aquisição gradual de habilidades práticas (gerir dinheiro, cuidar da casa, fazer comida, trabalhar), acesso a serviços socioassistenciais fundamentais para esse momento da vida (benefícios disponíveis, alternativas de moradia, possibilidades de emprego) e vínculos afetivos duradouros com adultos que os ajudem a perceber e reconhecer suas habilidades, qualidades e potências e a tomar decisões.

Entrar em contato com essa realidade, colocando-se genuinamente no lugar desses adolescentes não é fácil e a princípio você pode se sentir impotente, ficar com a impressão que não tem nada ver com isso ou que nada pode fazer a respeito. Mas a sociedade civil tem muito a contribuir com esses meninos e meninas, seja se vinculando de forma duradoura a eles como madrinha ou padrinho, seja abrindo as portas de sua empresa para oferta de bons empregos, seja ensinando um ofício, seja dando mais visibilidade à realidade deles ou reivindicando políticas públicas mais amplas, diversificadas e eficientes junto ao poder público. Contamos com sua ajuda na divulgação e sensibilização daqueles com quem você convive para tornarmos mais visível essa situação e para somarmos esforços no processo de qualificação das estratégias de apoio a esses meninos e meninas que de fato precisam ser prioridade no nosso país.

 


[1] O nome é fictício para preservar a identidade da adolescente.

[2] O nome é fictício para preservar a identidade do adolescente.

Autora: Debora Vigevani - Coordenadora de Advocacy do Instituto Fazendo História