No dia 06 de novembro de 2021, a equipe do nosso Serviço de Famílias Acolhedoras realizou um encontro muito especial, que reuniu todas as famílias acolhedoras que já passaram pelo Serviço, além de seus filhos/as, crianças acolhidas atualmente e duas crianças que foram acolhidas por nós! O cenário foi o parque da Aclimação, um lugar amplo e arborizado bem pertinho da nossa nova sede. Ao todo participaram 20 crianças e adolescentes acolhedores, 5 crianças que estão atualmente em acolhimento e 2 crianças que haviam sido acolhidas.

O objetivo foi ouvir as crianças e o que elas têm a dizer sobre o acolhimento! Para isso, proporcionamos trocas entre os filhos/as das famílias acolhedoras mais experientes, que já acolheram diversas vezes, com os filhos/as das novas famílias acolhedoras, que ainda não passaram pela experiência de acolher. Também ouvimos as crianças que estão acolhidas atualmente no Serviço, e duas crianças que haviam sido acolhidas. O que elas nos contam sobre a experiência do acolhimento?

Tudo isso de maneira lúdica, respeitando o tempo de todos/as! As famílias acolhedoras ficaram de fora dessa atividade, já que o foco estava na voz dos pequenos, os grupos com as crianças foram mediados pelos técnicos do Serviço, assim, as crianças podiam falar livremente sobre os sentimentos que permeiam esse processo. 

Para quebrar o gelo começamos com uma dinâmica  de apresentação, cada criança falava seu nome, idade, e o que mais gostava de fazer. Depois o grupo foi dividido em três partes com cores diferentes e, realizamos um caça ao tesouro pelo parque, em cada uma das pistas as crianças encontravam uma palavra como ciúmes, amor, privacidade, carinho, saudade, companheirismo, alegria, entre outras. Depois de encontrar todas as palavras, os grupos se reuniram, contaram sobre a atividade e fizeram um cartaz. As palavras foram coladas na cartolina e as crianças puderam falar sobre cada um dos sentimentos, e de situações de sua vida onde esses sentimentos estavam presentes. Cada grupo ficou responsável por decorar o cartaz, alguns o fizeram com gramas e folhas, e outros com papéis recortados e canetinhas.

"privacidade é quando você fecha a porta"  

"tristeza é quando você espera que algo vai acontecer e não acontece"

  

Crianças acolhedoras

Os filhos/as das famílias acolhedoras foram divididos em dois grupos e dentre estes, 15 já tinham vivido a experiência ou estavam vivendo o acolhimento. Esses filhos/as tiveram falas autênticas e ao mesmo tempo, reproduzem os discursos dos adultos quanto ao acolhimento: ajudar uma criança temporariamente até ser definida a sua "família do pra sempre". Também compartilharam as experiências quanto às chegadas e partidas, os momentos de celebração e saudade, mas também de raivas e angústias com o bebê ou a criança que está em sua casa.

As crianças acolhedoras falaram bastante de como suas rotinas são alteradas com o acolhimento. Tudo muda! Os passeios e brincadeiras são outros, a sala é tomada por brinquedos, os vasos são retirados e as redes surgem nas janelas. Além disso, o tempo e atenção dos pais também não é o mesmo com a chegada do bebê e/ou criança em sua casa.

Os sentimentos em relação a despedida são ambíguos: por um lado feliz, a vida retornará como antes, os espaços e ambientes serão retomados, mas ao mesmo tempo de tristeza e saudades desse bebê que ocupou espaços na casa, mas sabendo que essa criança irá para seu próprio lugar e fincará raízes em um novo lar seguro.

Compreendemos que crianças acolhedoras têm experiências sociais distintas de outras crianças da mesma idade. A visão e entendimento social, a possibilidade de enxergar outras realidades e de vivenciá-las dentro de casa traz a essas crianças maior empatia, e cuidado, ao mesmo tempo que as coloca frente a situações de diversas despedidas, complexidades das relações familiares, e das emoções.

Crianças acolhidas

No grupo de crianças que vivenciam/vivenciaram o acolhimento, as palavras do caça ao tesouro mobilizaram sentimentos e vivências importantes, elas puderam falar do medo de estar em um lugar desconhecido e longe de sua casa, da saudade de casa e da família, e da raiva por estar acolhido e por estar longe da mãe. Além disso, pudemos perceber que palavras como carinho e amor foram colocadas no cartaz para representar a possibilidade de criar afetos mesmo sabendo das despedidas - é impossível um acolhimento sem afetos, vale ressaltar. 

As crianças explicaram suas emoções e colaram as palavras de forma representativa no cartaz, recheando o espaço com figuras naturais do ambiente, retirando as raízes das plantas e pedindo para colá-las, buscando por flores em outros espaços e percorrendo linhas e caminhos com canetinha.

Uma das crianças que já tinha saído do acolhimento falou uma frase que exprimiu com poucas palavras a ambivalência presente em todo o processo de acolhimento, para todos os envolvidos, seja família acolhedora, filhos/as das famílias, e crianças acolhidas.

 

" quando eu estava com a família acolhedora eu sentia falta da minha família, agora que eu estou com a minha família , eu sinto falta da família acolhedora" (Luisa, 5 anos)[1]

 

Fala sincera, verdadeira, que fala da ambivalência, mas que também fala do afeto envolvido, dos vínculos duradouros que se formam no acolhimento, e que não se encerram com o fim da medida de proteção. A criança acolhida traz em sua bagagem angústias, sofrimento e violações, mas também amor, saudade e pertencimento, e a família acolhedora e seus filhos/as têm um papel fundamental nessa transição entre o acolhimento e novos inícios.

Nada é simples nessa tarefa de acolher e ser acolhido, ouvir as crianças e o que elas têm a nos dizer permite identificar que o acolhimento é um grande divisor de águas, traz afeto, novidade, carinho e proteção, mas também muda a vida, e pede adaptações de todos os lados.

Ouvir as crianças durante todas as etapas do acolhimento é fundamental, entendendo que elas são sujeitos de direito, com capacidade para construir e reconstruir narrativas sobre si e sobre o mundo ao seu redor. Escutá-las atentamente permite que nos conectemos com suas vivências, necessidades, e interesses. A escuta genuína é parte essencial do acolher, para oferecer um acolhimento reparador é necessário antes de tudo escutar!

  

"É difícil expressar em um texto todas as emoções que senti nesse dia, quando paro para pensar lembro de vários momentos de coração acelerado e olhos molhados. E um dos mais marcantes foi quando Bruno, garoto acolhido no nosso Serviço, disse em meio ao grupo que quando está com saudades do seu pai fica triste, nesse momento todos ficaram em silêncio e Samuel filho de uma das famílias acolhedoras respondeu que quando a criança que for acolhida pela sua família ficar triste vai poder segurar a sua mão com força. Nessa hora em minha cabeça ressoou o silêncio e a expectativa do que estaria por vir, quando olhei para Bruno ele estava sorrindo para Samuel e os dois correram para brincar com folhas secas ao lado do lago. Que sentimento lindo é o amor, o amor que cresce se expande e contagia, amor que não enxerga diferenças, amor que cura e acolhe. Isso é o acolhimento familiar.

E depois de vivenciar esse dia, fico ainda mais com a certeza que em um momento de turbulência, tudo que uma criança precisa para atravessá-la em sua vida familiar é ser acolhida provisoriamente por outra família, o impacto que o acolhimento familiar tem na vida de todos os envolvidos é imensurável."  (Sara Luvisotto, coordenadora do Serviço)

 

[1] Os nomes usados são fictícios para preservar a identidade das crianças.