O Instituto Fazendo História (IFH) é uma organização da Sociedade Civil que atua desde 2005 junto a serviços de acolhimento em diversos estados do Brasil. O trabalho ocorre para que crianças e adolescentes que precisaram ser separados de suas famílias pelas mais diversas razões, encontrem no período do acolhimento uma oportunidade de reparação afetiva.

Pela presente nota REENVINDICAMOS VETO ao Projeto de Lei 755/20 de autoria da Deputada Estadual Janaina Paschoal. O PL prevê que “famílias habilitadas para adotar terão prioridade para receber a guarda de crianças ou adolescentes, com reduzidas chances de retornar ao seio de suas famílias biológicas, além de outras providências”.

O Brasil vive valioso momento histórico de avaliação e atualização do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária. Além disso, na semana passada, foi publicada uma diretriz nacional para a implementação e execução dos serviços de acolhimento em família acolhedora (Guia de Acolhimento Familiar), da qual o Instituto participou ativamente. Nesse contexto de conquistas e avanços, não podemos permitir a promulgação de um PL que, além de inconstitucional por se sobrepor a leis federais, é um retrocesso à garantia dos direitos das crianças e adolescentes acolhidos e suas famílias de origem.

A Lei 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ao promover a doutrina da proteção integral, inaugura uma nova era de cuidados, políticas e atenção à criança e ao adolescente. A Lei 12.010/09 foi promulgada após amplo debate e aperfeiçoa o ECA no que tange à convivência familiar e comunitária. Nós, do Instituto Fazendo História, temos orgulho em trabalhar a partir do ECA e segurança em defender essa normativa, reconhecendo seu valor, ao regulamentar o artigo 227 da Constituição Federativa do Brasil, de 1988, que assegura a Absoluta Prioridade à crianças, adolescentes e jovens.

O direito à convivência familiar e comunitária é o desafio constante que move a equipe do IFH. Ele se fundamenta na prevenção ao rompimento dos vínculos familiares, na qualificação do atendimento dos serviços de acolhimento e no investimento para o retorno ao convívio com a família de origem. A adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer depois de aplicados os recursos previstos para a manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa. Ela deve ocorrer dentro da regulamentação já estabelecida.

O Acolhimento Institucional e em Família Acolhedora são serviços socioassistenciais tipificados na Política Nacional de Assistência Social com caráter protetivo excepcional e provisório (PNAS/2004). Por ser uma política pública, o acolhimento sob forma de guarda não pode ser realizado por pessoas da sociedade civil que não estejam vinculadas a um serviço de caráter público. Ao propor que famílias habilitadas para adotar tenham prioridade para receber a guarda de crianças ou adolescentes, com reduzidas chances de retornar ao seio de suas famílias biológicas, o PL estabelece que essas famílias exercerão papel semelhante ao das famílias acolhedoras, o que é vetado pelo ECA.

Importante considerar também que os papéis das pessoas habilitadas para a adoção e daqueles que atuam em um serviço de acolhimento são radicalmente diferentes e até opostos. Os objetivos desse serviço público são 1) a preservação do vínculo e do contato da criança e do adolescente com a sua família de origem, salvo determinação judicial em contrário; 2) investimento no potencial das famílias de origem, favorecendo a superação dos motivos que ensejaram a medida protetiva; 3) preparação da criança e do adolescente para o desligamento e retorno à família de origem ou, excepcionalmente, seu encaminhamento para a adoção. Pretendentes à adoção teriam muita dificuldade de contribuir com o fortalecimento das famílias de origem e preservação do vínculo entre elas e seus filhos. Certamente não porque são mal intencionados, mas porque o desejo legítimo de construir uma família impediria que atuassem da mesma forma que um serviço de acolhimento.

O acolhimento é um serviço de proteção social especial de alta complexidade e, como tal, exige que os adultos que cuidam das crianças e adolescentes sejam formados e selecionados para exercer esse papel. O PL não explica se as famílias habilitadas que poderão receber a guarda de crianças e adolescentes sob medida protetiva seriam formadas, selecionadas e acompanhadas para desempenhar o papel de proteção e cuidados provisórios. Embora o PL não deixe isso explícito, as famílias habilitadas exerceriam um papel semelhante aos das famílias acolhedoras, o que exigiria clareza sobre seu papel dentro de uma política pública que se dá na relação com diferentes atores do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. Nesse sentido, ainda que as normativas federais permitissem que famílias habilitadas para adotar exercessem papel semelhante ao das famílias acolhedoras, esses pretendentes também deveriam passar por um rigoroso processo de formação, seleção e acompanhamento para o exercício de um serviço de caráter público, cujo objetivo prioritário é o retorno à família de origem e, quando não for possível, a adoção.

Importante salientar também que não é possível determinar no momento que se define a separação de uma criança ou adolescente de sua família de origem se há chances ou não de reintegração familiar. De acordo com as Orientações Técnicas, os serviços de acolhimento institucionais e em família acolhedora são responsáveis pela articulação intersetorial que fortalecerá as famílias de origem para que recuperem sua capacidade de cuidado e proteção. O ECA estabelece o prazo de 18 meses para que as crianças e adolescentes sejam, prioritariamente, reintegradas às suas famílias de origem e, excepcionalmente, encaminhadas para adoção. Definir antes disso que há poucas chances de retorno à família biológica fere tanto o direito das crianças e adolescentes como de suas famílias de origem. Conceder a guarda de uma criança ou adolescente para uma família substituta antes da decisão judicial pela destituição do poder familiar parece uma tentativa de driblar o que postula o ECA, permitindo que uma família substituta atue como família acolhedora (ainda que o PL não nomeie dessa forma).

O ECA reconhece as crianças como SUJEITOS DE DIREITOS. No entanto, as visitas aos serviços de acolhimento por famílias habilitadas para a adoção, propostas pelo PL, colocam as crianças e os adolescentes em uma posição de objetos do desejo e interesse de adultos. Permitem que sejam escolhidos ou não, como uma mercadoria. A possibilidade de serem ou não escolhidos a cada visita os submete a um constante estresse e sentimento de rejeição e culpa caso não sejam “os escolhidos”. Além disso, de acordo com as Orientações Técnicas (2009), o serviço de acolhimento deve se assemelhar a uma casa, onde certamente não podem circular regularmente pessoas desconhecidas. A entrada e saída constantes de desconhecidos geram expectativas, receios, sentimentos de menos valia, competição, falsas expectativas e impactos emocionais importantes.

O PL menciona também a busca ativa de famílias para crianças e adolescentes, mas na realidade descreve a busca de crianças pelas famílias. A busca ativa não pode responder aos interesses dos pretendentes e não significa ir em um serviço de acolhimento para escolher crianças ou adolescentes. Trata-se de buscar uma família para determinadas meninos e meninas, normalmente mais velhos ou com problemas de saúde, que não possuem o perfil desejado pela maioria dos pretendentes. “Buscar crianças e adolescentes que se encontram acolhidos, porém não cadastrados no sistema de adoção” (redação do PL) não só subverte a lógica da busca ativa como pressupõe que a adoção é a medida mais indicada para todas as crianças e adolescentes acolhidos, independentemente da sua situação judicial. Isto é, os pretendentes poderiam se relacionar com crianças e adolescentes sem terem sua situação jurídica de destituição do poder familiar definida, o que poderia prejudicar o trabalho de fortalecimento de vínculos entre as crianças e suas famílias de origem e, consequentemente, o direito de serem a elas reintegradas. O fato de crianças e adolescentes se encontrarem acolhidos não significa que os mesmos não têm família e que não possam a ela retornar de forma segura.

O argumento de que o PL poderá beneficiar as crianças e adolescentes, acelerando o processo de adoção não se justifica. Crianças de até 3 anos cujos processos de destituição do poder familiar já foram finalizados são adotadas em poucos meses. Quem sofre com um longo tempo de espera por uma adoção, às vezes por até mais de 5 anos, são os pretendentes que escolhem um perfil muito restrito de crianças que aceitariam adotar: em geral bebês, sem problemas de saúde, sem irmãos e etc. Ou seja, há muitos interessados e poucos bebês disponíveis com esse perfil. Certamente essa desproporção numérica prolonga o tempo de espera dos adultos, que não corresponde ao tempo de espera de bebês e crianças pequenas. De acordo com os dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento em 2020 (CNJ), as crianças na fase da primeira infância – de 0 a 6 anos – somavam 9.160. Cerca de 2.400 bebês com até 3 anos aguardavam até seis meses pelo retorno à família de origem ou pela adoção. Este é o mesmo tempo de acolhimento a que estão submetidas a maioria das crianças com 3 a 6 anos. Dessa forma, verifica-se que é um equívoco dizer que as crianças, sobretudo pequenas, ficam anos acolhidas aguardando uma adoção.

Pelas razões expostas o IFH se posiciona contra a Proposta de Lei da Deputada Janaina Paschoal e solicita veto do governador, colocando-se à disposição para esclarecer quaisquer dúvidas relativas ao PL em questão ou à política da Convivência Familiar e Comunitária.

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