No contexto do acolhimento e adoção de crianças e adolescentes, nos deparamos com inúmeras fantasias acerca das famílias de origem que entregam seus filhos ou os têm retirados pelo Estado quando é verificado que, por algum motivo, elas não estão sendo capazes de  garantir os direitos da criança naquele momento. 

Quando falamos de bebês e crianças menores, as pré-concepções sobre suas origens costumam ser ainda maiores, pois temos diante de nós um(a) pequeno(a) que não é capaz de falar sobre as vivências que antecederam seu acolhimento e/ou adoção. E quando faltam palavras e história, sobram fantasias! 

É interessante notar que os estigmas comumente recaem de modo mais intenso sobre as mães dessas crianças, que, de acordo com uma crença comum à nossa sociedade, deveriam possuir um “instinto materno” que as levassem a priorizar o vínculo com seu bebê independentemente de qualquer dificuldade ou do seu próprio desejo. 

Uma pergunta que muitas pessoas fazem é: “Como pode uma mãe, alguém que deveria amar, proteger e zelar por seu filho, ser capaz de abandonar e/ou machucar um serzinho tão puro e indefeso?”. É possível que até você já tenha pensado nisso, mesmo que sem a intenção consciente de julgar essas mães! Isto acontece porque pensar no sofrimento de uma criança comumente desperta em nós sentimentos como raiva, angústia e incompreensão, além de um desejo quase automático de reparar as injustiças vividas por ela e culpar os responsáveis por seu sofrimento. 

No entanto, para nos desvencilharmos de uma lógica simplista de culpabilização das famílias de origem - que não contribui para o bem-estar da criança - precisamos compreender que existem inúmeros motivos pelos quais uma criança precisa ser acolhida, como, por exemplo, pela ausência do desejo ou de condições psicológicas e psiquiátricas dos pais para cuidarem de seu filho. 

Inúmeros fatores também podem agravar as dificuldades em oferecer os direitos e cuidados necessários às crianças, ou mesmo inviabilizá-los, como o uso abusivo de álcool e outras drogas, muitas vezes concomitantes a síndromes psiquiátricas, e até mesmo a ausência de condições socioeconômicas. Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente e outras normativas preconizem que nenhuma criança seja retirada de sua família por questões econômicas, sabemos que ainda hoje essas questões estão relacionadas aos principais motivos do acolhimento de crianças no Brasil. Num país com tantas desigualdades, as políticas públicas de amparo a essas famílias ainda são insuficientes!

Dessa forma, falamos de várias circunstâncias em que ter um filho pode tanto não ser um desejo como não ser uma possibilidade para algumas famílias. Como disseram Aguera, Cavalli e Oliveira (2007): “Não estamos fazendo apologia à vitimização das famílias destituídas, mas acreditamos que por detrás de uma criança abandonada existe uma família que foi primeiramente abandonada e excluída socialmente, que se encontra em situação de miséria, exclusão, desemprego, desinformação, alienação, doenças mentais, isolamento, alcoolismo, violência, entre outros”.

Independentemente dos motivos e das circunstâncias pelas quais uma criança é acolhida e/ou encaminhada para adoção, o julgamento e a recriminação da sua origem são extremamente prejudiciais para ela. Isto porque as famílias de origem constituem uma parte importante da história de vida das crianças e adolescentes acolhidos/adotados, e de sua identidade. 

Se os adultos que cuidam de crianças acolhidas/adotadas repudiam suas origens, elas poderão sentir que há algo de errado e muito ruim com uma parte delas mesmas! A história do sujeito é constitutiva para sua formação e, por isso, o conhecimento sobre a origem não pode ser ignorado, nem demonizado, nem disfarçado, mas sim reconhecido pelo que é: uma história marcada por situações muito difíceis e pela sobrevivência, apesar de tudo. 

Ainda, é preciso considerar outro ponto: nem só de passagens tristes e violentas se fez a história das crianças acolhidas/adotadas. Muitas também passaram por situações de alegria e afeto com suas famílias de origem. Olhar só para a parte dura da história é desconsiderar sua complexidade e apagar o que de bom a criança teve naquela relação. 

Gostaríamos de te convidar agora, por um instante, a inverter o olhar tipicamente direcionado a situações de abandono e de dificuldades no início da vida. Se normalmente o discurso em torno dessas crianças se volta para a tragédia que foi a sua vinda ao mundo, é possível, de outra forma, se atentar para toda a potência envolvida nessa história. Afinal, mesmo com toda a dificuldade, a criança e o adolescente acolhido/adotado está aqui agora, vivo, insistindo em viver! 


Por Ana Clara Fusaro Rodrigues