No dia 14 de junho de 2022, o Instituto Fazendo História realizou a oficina online “Sexualidade e Desenvolvimento”, que contou com a participação das especialistas Camila Guastaferro, psicóloga, mestre em Ciências pelo Programa de Educação e Saúde na Infância e Adolescência (UNIFESP) e diretora científica do Instituto Kaplan, e  Carla Veríssimo, psicóloga, psicanalista, mestre em psicologia social pela PUC/SP e que trabalha com serviços de acolhimento desde 1998,  como técnica, coordenadora e analista institucional.

Camila inicia sua apresentação trazendo que, quando pensamos em sexualidade, falamos de um aspecto central do ser humano, de uma energia que motiva para a vida e que se conecta a como nos sentimos, percebemos e a como nosso corpo reage e sente prazer. Marca uma diferença no entendimento apenas como um fator biológico, ampliando para algo que começa a se inscrever na nossa existência conforme nos constituímos como sujeito e formamos os primeiros vínculos, envolvendo nossos pensamentos, fantasias, desejos e crenças. Aborda, assim, como os conceitos que rodeiam a compreensão do que é sexualidade vão se transformando, já que são históricos e culturais, e que ela participa de formas diferentes em cada fase de nossa vida.

A partir daí, Camila traça um percurso do desenvolvimento da sexualidade, desde a primeira infância e abrangendo como ela vai permeando de diferentes formas nossas experiências no mundo e as mudanças que vamos passando. Traz que, ao contrário do senso comum, que remete à relação sexual e à masturbação, a sexualidade começa quando nascemos e ainda somos completamente dependentes do outro, passando a nos relacionar com o nosso corpo e a capturar as sensações que o mundo nos promove. Nesse período, de 0 a 1 ano, nossas experiências de prazer estão mais centradas na sobrevivência e localizadas na região oral, associadas a como vamos entendendo esse vínculo que vai se constituindo com nossos cuidadores, o qual pode contribuir, ou não, para construção de uma base de segurança e confiança em si e no outro.

Em seguida, a especialista coloca que, na fase de 1 a 2 anos, de uma relação de dependência total, a criança passa para uma posição de dependência relativa, quando entra o controle motor, ela começa a descobrir os limites corporais e a apontar e falar de seus desejos. Segue descobrindo o mundo a partir da sensorialidade e da experimentação, mas ampliam-se as formas de sentir prazer, relacionadas à incorporação das regras sociais, à descoberta do que é ela e o que é o outro e do que é reconhecido e o que é negado. Surge uma angústia relacionada à separação de suas figuras constantes, quando elas existem, e que depende de como ela pode transitar nos espaços de descobertas e de caminhar para sua autonomia.

Ao falar do período de 3 a 6 anos, Camila apresenta uma criança que já domina a fala, observa, expressa ideias e vai descobrindo diferentes sensações de prazer. É uma fase marcada pelo aumento da capacidade de realização, onde ela começa a conhecer os papéis sexuais e de gênero, as interdições e a ter curiosidade na exploração do corpo do outro. Surge também a culpa relacionada à sexualidade, quando percebe que se tocar uma certa região de seu corpo, se produz uma sensação gostosa (falamos aqui de manipulação, não ainda de masturbação, a qual se relaciona à adolescência e que envolve uma intenção erótica). A auto-permissão assume um lugar fundamental, como condição para que, em futuros encontros amorosos, as pessoas consigam se permitir e se apropriar de como o corpo sente prazer.

Dos 7 aos 10 anos, a especialista destaca uma maior capacidade para perceber o mundo, conhecendo-o e explorando-o, momento fundamental para o desenvolvimento da sexualidade e de inscrição de uma valorização de si, do que consegue fazer e de qual o seu papel nos grupos que faz parte. É quando se entra em contato com como o corpo funciona e amplia-se sua curiosidade, sendo muito importante acompanhar a criança, a partir das informações que ela traz, do que sabe e até onde vai. Reforça como uma sexualidade cheia de tabus pode impedir que ela se aproprie de si mesma e tenha segurança em poder sentir prazer com seu corpo, de acordo com sua faixa etária.

Por fim, Camila apresenta a fase da adolescência, abrangendo como a puberdade faz parte desse período, associada às mudanças no corpo, que atinge a capacidade reprodutiva e sexual. É quando o adolescente vai absorvendo todas as transformações que vão ocorrendo, permeadas por bastante sofrimento, reconhecendo como se apropria e se há identificação ou estranhamento em relação a seu corpo. Percebe mudanças em suas relações, aparecem novos sentimentos e sensações e ampliam-se as possibilidades de questionar e entrar em contato com uma multiplicidade de prazeres, interesses e comportamentos no exercício de sua sexualidade. Ela finaliza enfatizando como é essencial um espaço no qual o adolescente possa falar desse corpo, de como o sente e o percebe, incorporando conceitos de liberdade e singularidades.

Carla, por sua vez, se utiliza da fala de Camila como pano de fundo, para abordar aspectos acerca da atuação dos profissionais nos serviços de acolhimento no que diz respeito à sexualidade. Inicia trazendo como é complexo esse trabalho, no qual todos devem se enxergar como educadores, e chama para a responsabilidade de garantir o caráter protetivo e de promoção dos direitos das crianças e dos adolescentes. Destaca como fundamental a consideração sobre qual o espaço social que estamos inseridos e o que ele traz de história, que reproduzimos em nossas práticas institucionais.

A segunda especialista reforça a importância do papel do educador como um influenciador na vida dessas crianças, adolescentes e famílias em situação de vulnerabilidade e apresenta alguns dispositivos centrais para nortear essa prática. O primeiro deles é o Projeto Político Pedagógico do Serviço (PPP), o qual precisa ser cuidadosamente construído e revisado, para se pensar quais são os princípios e diretrizes que conduzirão o trabalho e como temas como identidade, individualidade e diversidade cultural e religiosa serão tratados. Ela indica que é por meio desse projeto, que deve incluir o olhar de todos os atores envolvidos no serviço, que compreenderemos se há e qual a abertura para se conversar a respeito da sexualidade, como olhar para cada criança e adolescente e, a partir daí, qual a responsabilidade, enquanto educador, nesse percurso.

Carla também discorre acerca do Plano Individual de Atendimento (PIA), como um instrumento que permite pensar no projeto que aquele serviço tem para desenvolver com cada uma das crianças e adolescentes. Aborda como, para sua elaboração, se torna essencial uma conversa prévia entre toda a equipe, considerando diferentes olhares e informações sobre aquela criança ou adolescente e, nessa perspectiva, a participação dos educadores é estratégica, já que são eles que ficam mais tempo com o grupo, cuidando, escutando as angústias e lidando com os conflitos que surgem, de forma mais imediata. Atenta para a importância da inclusão das famílias, assim como de outras instituições e da própria comunidade, para que se compreenda sua realidade, qual a sua história de vida e a razão da medida de acolhimento.

A partir daí, Carla direciona ao que isso tem a ver com a temática da sexualidade. Aponta como é importante compreender o desenvolvimento individual e como esse aspecto se opera em cada um, assim como quais foram os estímulos que essa criança recebeu e qual é a ideia de sexualidade que a permeia. Em relação às situações delicadas que podem surgir nos serviços, traz como é importante os espaços de troca e de interlocução com toda a equipe e questiona até onde vão as possibilidades e limites de atuação. Apresenta uma situação de erotização precoce, quando ocorre uma estimulação inadequada, antecedendo a fase de desenvolvimento que a criança está, para pensarmos nos desafios que se impõe sobre como entender o caso e agir. Outra situação que surge é de quando há um interesse de um adolescente por um educador: como cuidar para que não atuemos apenas de modo repressivo? Como consideramos o momento da adolescência e como é preciso dar espaço para que tragam questões que os angustiam e para que desenvolvam sua sexualidade de modo tranquilo?

Ela também atenta para o desafio de, nos Serviços de acolhimento, encarar os desconfortos frente às questões que “borbulham”, principalmente com os adolescentes, pensando em como se conduz e qual o reflexo dessas ações para o futuro deles. Trabalhamos com silenciamentos, onde tudo é proibido e nada pode ser dito? Como lidar com o segredo que nos contam? E com atitudes que são permitidas nas casas de suas famílias, mas nos serviços não? Como é tratada a diferença de gênero? E a pouca privacidade que se tem dentro do serviço?  Coloca como todos esses aspectos são bastante complicados e precisam de espaço para serem tratados de forma humanizada, para que não se caia em uma exigência de rigor na conduta, além do que pode ser posto em prática por um sujeito saudável.

Carla finaliza problematizando o lugar desse educador, que precisa se abrir para, de fato, ser tocado e rever suas próprias posições, princípios e o que pode ou não ser permitido, a partir do que se apresenta no contato com o outro. Sem essa abertura, não conseguimos oferecer condições que contribuam para o desenvolvimento intelectual, emocional e social dessas crianças e adolescentes, para que sejam capazes de enfrentar o mundo.

Por fim, foi aberto um diálogo com os participantes, para que trouxessem perguntas e considerações sobre o que foi abordado, associando às suas experiências na área do acolhimento. Surgiram alguns questionamentos acerca de como conversar sobre o tema da sexualidade e escolher os materiais a serem utilizados com as crianças e adolescentes, de acordo com sua idade. Nesse momento, as especialistas destacam a importância de reconhecer a capacidade cognitiva de cada um e como é possível trabalhar sobre um mesmo aspecto, como é o caso do consentimento, de formas diferentes, respeitando cada fase e incluindo mais repertórios à medida que eles se desenvolvem. Abordam também como fundamental trabalhar processualmente, não interditando, mas trazendo limites e regras que indiquem a relação com a sexualidade como algo privado, e nomeando diferenças, que possibilitem às crianças e aos adolescentes estabelecer um lugar de segurança em relação ao seu corpo.

A oficina está disponível na íntegra no canal do YouTube do Instituto Fazendo História: