Profissionais dos serviços de acolhimento, incluindo psicólogos, assistentes sociais e educadores, acompanham cotidianamente os muitos desafios enfrentados por crianças e adolescentes afastados de suas famílias. Eles são  responsáveis, entre diferentes atribuições, pelo trabalho de compreensão das fragilidades e potências dessas crianças, adolescentes e seus familiares, e da singularidade de sua história de vida.

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Não são histórias fáceis de se ouvir. Uma condição de existência atravessada pela desproteção social e pela perda de direitos fundamentais exige cuidados, pois pode causar prejuízos à capacidade de estabelecer relações afetivas e comprometer outros aspectos do desenvolvimento cognitivo e/ou social.

É nesse contexto em que se ouvem frases como “todas as crianças e adolescentes acolhidos precisam de psicoterapia”. Mas, estaria no universalismo do “para todos” o risco de naturalizar e/ou apagar as singularidades de cada um? Que outros fatores precisam ser considerados antes de se propor uma psicoterapia para uma criança ou adolescente acolhido?

A desproteção social vivida por famílias que perderam a guarda de seus filhos tem na precariedade material a superfície mais visível de um profundo abismo de violação de direitos. A pobreza[1], que não é um motivo de acolhimento, está intimamente relacionada a condições frágeis (por vezes limítrofes) de sobrevivência e a situações de risco de várias ordens. Reconhecer, sem julgamento, a complexidade das situações que culminaram no acolhimento é fundamental para não transformar em patologia o sofrimento humano decorrente de violações sofridas nesse contexto.

Não se trata, no entanto, de minimizar as dificuldades que se revelam na trajetória de vida da criança e do adolescente com vínculos afetivos fortemente fragilizados ou rompidos. O afastamento da família, quando somado ao ambiente do abrigo percebido como não confiável durante o período de acolhimento, especialmente em longas permanências, podem gerar sentimentos de insegurança, desamparo e não pertencimento.

Esse aspecto demonstra a importância de promover um ambiente capaz de suprir satisfatoriamente as necessidades físicas e emocionais da criança e do adolescente e permitir seu desenvolvimento saudável durante o período de acolhimento. O ambiente, ao oferecer uma boa condição de adaptação às necessidades da criança, permite que ela desenvolva recursos para reagir a situações emocionalmente desafiadoras, sem adoecer.

O acolhimento por pessoas afetuosas, compreensivas, em um ambiente acolhedor pode minimizar os efeitos negativos da separação. Além da qualidade do cuidado oferecido no acolhimento, um conjunto de fatores influenciam, atenuando ou ampliando, os efeitos da institucionalização na infância. Tais fatores incluem: os motivos que levaram à separação da família, o tipo de relacionamento prévio com a família, a idade da criança, a duração da institucionalização, a oportunidade de desenvolver relações seguras após a separação, entre outros. 

Assim, a atenção à saúde mental e ao sofrimento psíquico começa com um olhar sobre a qualidade do próprio acolhimento oferecido e deve ter na psicoterapia não o primeiro recurso, mas um espaço adicional de cuidado para situações específicas, a partir da singularidade de cada sujeito. Um bom trabalho de acolhimento, inclui o olhar atento dos adultos cuidadores sobre a criança e o adolescente, o trabalho com histórias de vida, a escuta da singularidade de cada sujeito e a oferta de vínculos seguros e estáveis.

Alterações significativas e persistentes de sono, alimentar, de controle de fezes e urina, da capacidade de brincar e de se relacionar com os outros, entre outras, podem ser indicadores de que algo não vai bem. Discutir em equipe esses e outros fatores relevantes pode ser um caminho para pensar intervenções de cuidado, inclusive (e não apenas) via psicoterapia.

Muitas crianças e adolescentes encontram no acolhimento e em relações afetivas significativas os recursos necessários para ressignificar as próprias vivências e desafios; outros necessitam de cuidados adicionais, incluindo um atendimento psicoterapêutico oferecido por profissionais qualificados. Assim, não são todas as crianças e adolescentes que foram ou estão acolhidos que precisam de psicoterapia, mas é fundamental que haja uma atenção para identificar e buscar encaminhamento nos casos em que se identifique tal demanda.

 Para saber mais acesse a publicação Psicoterapia com crianças e adolescentes acolhidos.

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 Ana Raquel Ribeiro

Psicanalista, Coordenadora do Com Tato



[1] A pobreza, mesmo não sendo motivo de acolhimento, é um marcador social desta população e das profundas desigualdades do Brasil. O fato de não haver crianças ou adolescentes de famílias ricas acolhidos não significa, em absoluto, que eles não estejam sujeitos a negligências e/ou violências de várias ordens.