A partir da série Maid da Netflix, visamos abordar as ressonâncias clínicas e políticas das medidas de proteção/desproteção social. A série e o texto a seguir foram disparadores da discussão realizada em duas Rodas de Conversa realizadas nos dias 22/11 e 09/12/2021.

Gostaria de expressar meu agradecimento carinhoso à Taisa Martinelli, juntas gestamos a ideia e a colocamos em prática. Para tanto, foi muito valiosa a colaboração da coordenadora do Programa Com Tato, Ana Raquel Ribeiro e o apoio do Instituto Fazendo História. Nossos convidados Drs. Iberê Dias (Juiz da Vara da Infância e Adolescência) e Lelio Ferraz de Siqueira (Promotor de Justiça) pelas companhias e colaborações que muito enriqueceram as discussões.

Nossa escolha se sustenta no reconhecimento de uma produção cinematográfica que diferentemente de banalizar, simplificar ou estereotipar os envolvidos e suas delicadas questões humanas, trata-as em toda a complexidade que têm. A partir disso, temos a oportunidade de falar das dores, do sofrimento e de seu enfrentamento em nossa inserção social, como cidadãos e profissionais comprometidos com a garantia de direitos que sustentam a possibilidade do viver. E aqui destaco o viver como algo além do sobreviver, direito à vida é direito simultaneamente à singularidade e ao laço com o outro.

Quando penso em rede de proteção, lembro de minha experiência como expectadora do mágico espetáculo do circo. Sempre tive especial apreço pelos trapezistas que, desafiando as leis da física e a ideia dos pés sempre firmes no chão, criam lindas performances. Para tanto, dois elementos são imprescindíveis: a confiança de que cada um está lá por todos e a presença da rede de proteção, que bem presa e esticada, lá embaixo permite que algum eventual movimento em falso não seja fatal.

Sabiamente as rendeiras e os pescadores nos ensinam que uma rede se faz com muitos fios que firmemente se entrelaçam, mas que mantém suavidade suficiente na trama. Nossa experiência cotidiana que inclui perspectivas distintas, nos desafia a mantermos a capacidade de nos deixar tocar e de seguir indignados frente a condições injustificáveis e aviltantes. Parece fácil? Mas não é, e me arrisco a hipotetizar por quê. Parte de nós lida todos os dias com muitas situações de enorme dor e desamparo. Posso citar como exemplo meu trabalho de escuta-dores. Trabalho acompanhando o outro na aposta de uma construção de narrativa que dê algum contorno a uma vivência, muitas vezes, extrema. Sabemos que uma das formas de nos defendermos diante daquilo que toca o mais íntimo da fragilidade humana, e, portanto, nos inclui, nosso desamparo, é nos dessensibilizarmos frente às brutalidades formando uma grossa crosta protetora. Se esta pode, num primeiro momento ser estratégia de sobrevivência, logo passa a nos roubar o que a vida tem de mais valioso: nossa capacidade de falar, de pensar e de criar. Como antídoto ao embrutecimento e à banalização do mal, como tão bem descreveu Hannah Arendt, o desafio de mantermos juntos nossa potência viva. Para tanto, as diferentes perspectivas reunidas  podem montar dispositivos antídotos. Estamos juntas e juntos para, como propunha Paulo Freire, esperançar!

Maid nos permite acompanhar Alex em seu duro e delicado percurso para romper com um círculo de repetição geracional no qual agressão, violência, busca por proteção e o encontro com várias situações de desproteção familiar e social estão indiscriminadamente enodadas. Acompanhamos simultaneamente o acesso de Alex aos direitos e as pequenas violências, e as nem tão pequenas assim, de Estado, traduzidas em gestos por ora mais evidentes e por ora bem mais sutis.  A série nos convoca e nos ajuda a pensar nas potencialidades, nas fragilidades e nos furos das políticas públicas de cuidado e de proteção social, temática que não escapa à ambivalência, à contradição, ao paradoxo e aos conflitos.

Como é árduo discriminar as diversas faces da violência, especialmente quando elas vêm daqueles que deveriam proteger. Alex não se sente no direito de pedir ajuda, pois não tem marcas no corpo que deem provas de que está sendo alvo de violência. Será que precisamos esperar pelas marcas no corpo? Por que as marcas subjetivas não são suficientes para legitimar a dor?

Nossa condição humana é de desamparados, o que quer dizer que dependemos do outro para sobreviver. Quando bebês, essa condição nos coloca em situação de extrema dependência de cuidado e amor daquele que exerce a função materna. Para quem exerce essa função, contar com o amparo daqueles que estão ao redor é o que possibilita a disponibilidade que o cuidado com um bebê exige. Aqui a rede de proteção é fundamental. Ela é composta pela família, mas não só. Uma família também precisa de ligação com o de fora, com a comunidade, com o social, para que os movimentos de tamanha proximidade não sejam sufocantes e repetitivos.

É muito angustiante acompanhar Alex na constatação de que lhe falta ou claudica a rede de apoio. A duras penas, ela vai abrindo brechas diante de um destino que parece implacável. Contudo é preciso mesclar seu admirável poder de resistir, com uma boa dose de agressividade a favor da vida. Danielle é fundamental nesse sentido. Stephanie Land, escritora que inspira a criação da série com sua história real, diz, em uma entrevista, que uma diferença entre sua história e a de Alex é que gostaria de ter tido Danielle como amiga (essa personagem foi ficcionalizada pela roteirista).

Alex, Danielle e Sean, assim como suas respectivas famílias estavam demasiadamente enredadas em um círculo de repetição mortífera no qual condições muito adversas sociais, econômicas e psíquicas denunciavam a falta de uma rede de apoio mais próxima que funcionasse em seu papel preventivo, no sentido de intervenções a tempo de não agravar ou mesmo cronificar situações de desproteção. O papel curativo é, sem sombra de dúvida, imprescindível, acompanhamos na série várias situações nas quais essa delicada nova urdidura vai sendo composta. Mas o papel de um cuidado para prevenir a abertura da ferida é grande aliada ao direito de viver.

Alex consegue manter com Maddy uma relação que não se reduz às experiências geracionais de dor e sofrimento. Temos acompanhado no trabalho do Com Tato, mães e pais que conseguem produzir novas relações de cuidado diferentes daquelas que vividas na própria infância. Mesmo quando estas não são totalmente suficientes para romper com a compulsão à repetição, são fundamentais para deixar marcas que apontem no sentido do reconhecimento do cuidado. Como trabalhadores da rede de proteção social, precisamos reconhecer a potência do inédito e acalentá-las. As políticas públicas podem ser fortes aliadas nesse sentido.

Sean, ao se dar conta de suas limitações, renuncia a uma disputa ressentida pela posse de Maddy. Ali onde para ele sua filha se confunde com sua própria criança, que se mantém assustada e acuada frente ao desamparo, ele consegue responder de uma forma diferente daquela habitual: a violência. É ao reconhecer sua importante limitação de dar conta, pelo menos naquele momento, que se protege e protege a pequena Maddy, interceptando um circuito de atuar seu próprio desamparo atingindo física e psiquicamente sua filha.

As questões são inúmeras e não caberiam todas nesse pequeno texto. Contudo, não poderia finalizar sem antes marcar algumas especificidades do contexto brasileiro. O que nosso passado colonial e ditatorial deixa como herança e perpetua em nossa realidade atual?

Segundo pesquisa do IPEA, o Brasil conta com 6,2 milhões de trabalhadores domésticos, sendo 92% mulheres e dentre elas 68% negras. A mesma pesquisa contabiliza 71 % das domésticas na informalidade.

Esse simples levantamento nos diz o suficiente para provarmos aquilo que já temos conhecimento pela vida cotidiana, basta que olhemos ao redor. Enfrentamos graves questões de perpetuação do status quo colonial, vivemos em um país que sofre os grandes efeitos de um racismo estrutural e que naturaliza a violência como forma de segurança. Judith Butler (2015) nos ensina que há vidas não passíveis de luto, ou seja, pessoas que teriam suas vidas invisibilizadas, não reconhecidas e, portanto, sem valor.  Por elas não se chora!

Não é possível deixarmos de fora esses elementos numa discussão acerca das medidas protetivas e das políticas públicas, questões que apontam para especificidade e gravidade do contexto de nosso país. Se não tomarmos e mantivermos a constante tarefa de enfrentamento das questões de maneira coletiva, corremos o risco de tomar catástrofes históricas e sociais como problema de alguns, o que é um grande e perigoso equívoco. Estamos diante de questões humanas para as quais só um tratamento complexo, multidisciplinar, solidário e que leve em conta a responsabilidade de cada um de nós, e de todos simultaneamente, contribuirá para que tenhamos um amanhã no qual nossas crianças e adolescentes sejam de fato o nosso maior investimento. Como diz o provérbio africano é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança.

No espírito de transformar nossa experiência cotidiana de acompanhamento de histórias de dor e sofrimento, mas simultaneamente de aposta e construção de possibilidades, propomos uma grupalidade de discussão e trabalho para todas e todos que queiram seguir pensando alternativas de enfrentamento da desproteção social. Vamos conversar?

 

Tatiana Inglez-Mazzarella

Psicanalista Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde é professora e supervisora do curso Psicopatologia Clínica e Clínica Contemporânea. Mestre e doutora em psicologia clínica pela PUC-SP. Autora dos livros “Fazer-se herdeiro: a transmissão psíquica entre gerações”, Ed. Escuta, 2006 e “Histórias Recobridoras: quando o vivido não se transforma em experiência”, Ed. Blucher, 2021. Co-organizadora do livro “Reflexões clínicas no contexto do Acolhimento”, Ed. Zagodoni, 2020. Supervisora do Programa Com Tato do Instituto Fazendo História.


  Bibliografia:

ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém, Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

 BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

 PINHEIRO, L.; TOKARSKI, C.; VASCONCELOS, M. Vulnerabilidades das trabalhadoras domésticas no contexto da pandemia de COVID-19 no Brasil. IPEA, ONU Mulheres. Nota Técnica, junho 2020.

 

 

 

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